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Reportagem de capa

Ela chegou faz 96 anos!

Um passeio pela Cascavel de quase um século atrás encontra uma menina de longevidade improvável cuja família sacolejou três anos sobre carroças até chegar ao novo Oeste

Ela chegou faz 96 anos!

O ano em que ela veio ao mundo, 1929, foi marcado por um evento econômico catastrófico: o crash da bolsa de valores de Nova York. O nome do local em que Christina Wichoski Konolsaisen nasceu, também intimida: às margens do Rio Tormenta, em algum ponto entre onde hoje estão as divisas dos municípios de Cascavel, Boa Vista da Aparecida e Três Barras do Paraná.

Em fevereiro último fez 96 anos que dona Chris está aqui. Não há registro de outra pessoa em vida há mais tempo em Cascavel. Tormenta não assustava essas pessoas, e provavelmente nem estavam informadas sobre a quebradeira internacional a partir da bolsa americana. As comunicações eram praticamente inexistentes, já que apenas uma precária linha de telégrafo em Catanduvas conectava o sertão oestino à civilização. 

Se temor existia, deve ter ficado na estrada. Os pais de dona Chris, descendentes de poloneses, viveram uma epopéia de Itaiopolis (SC) até as barrancas do Tormenta a bordo de um encorpado “comboio” de carroças. O trajeto - que hoje pode ser feito em pouco mais de sete horas pela rodovia - consumiu três anos. O comboio de migrantes era grande, talvez mais de 30 famílias. “Somente da família de meus avôs eram 19 filhos na comitiva, todos casados”, diz José Francisco, o “filho do meio” de dona Cris.

Era a chegada dos Wichoski, Fardoski, Chumoski, Chervinski, Munhak e outros “polacos”, como eram popularmente conhecidos. Alguns se estabeleceram em São João do Oeste, outros, como o caso do núcleo familiar de dona Chris, após breve passagem no Tormenta, fincaram raízes no Cascavel Velho e depois em Céu Azul.


CAFÉ COM CASÓRIO

Dona Chris conheceu o futuro marido, o ítalo-austríaco Francisco Konolsaisen, quando lecionava em Boa Vista, hoje distrito de Céu Azul. Chicão, como era conhecido, atuava no ramo da madeira, transportando pinheiro em um caminhão para portos do Rio Paraná. 

“No início era difícil entender o que ele dizia”, recorda-se a noiva do final dos anos 1940. Chicão era um poliglota mal interpretado, já que “arranhava” e mesclava os idiomas italiano, alemão e português.

O casório foi atípico. O horário das cerimônias católicas dependia da complexa agenda do padre Guilherme, que morava em Foz do Iguaçu. O sacerdote vinha a cavalo ou de ônibus para batizar e realizar casórios às margens da rodovia estratégica, hoje BR 277. 

A chegada dele a Céu Azul seria no início da manhã. “Então meus pais prepararam um café da manhã reforçado, convidamos todos os que estavam no ônibus para a cerimônia e saiu o casamento”, relata Chris, cuja memória recebe nesse ponto uma ajuda do filho José Francisco. 

Na sequência os noivos seguiram viagem no “ônibus do padre” para a lua de mel em um hotel de Ponta Grossa. Da união nasceram três filhos, Maria Terezinha, Maria Lilian e José Francisco.


A PRÔFE CRIS

Cristina e a irmã Terezinha estudaram para alfabetizar a criançada em Laranjeiras do Sul, em uma escola administrada por freiras. O trajeto entre Céu Azul e a escolinha era vencido de carroça. “Minha irmã chorava lá, pois não havia a fartura de alimentos que tínhamos na roça”, recorda-se dona Chris. Uma vez habilitada, a professora Christina Wichoski alfabetizou inúmeras crianças em Boa Vista, entre elas muitos filhos de paraguaios. De volta a Cascavel, nos anos 1950, lecionou para alunos que chegavam a cavalo na escolinha de madeira da rua Pio XII, que depois seria transferida para a Carlos de Carvalho com o o nome Eleodoro Ébano Pereira. Lecionou também nos colégios Santa Maria e Marista.

Na longa estada de dona Chris, do crash da bolsa ao rio com nome assustador, do café com casório às margens da 277, ela testemunhou de tudo um pouco: foi cidadã iguaçuense (em 1929 todo o território pertencia a Foz do Iguaçu), trabalhou para dois estados, o Território do Iguaçu (em 1946) e depois para o Estado do Paraná, viu Cascavel eleger seu primeiro prefeito em 1952 e, 96 anos depois do parto nas barrancas do Tormenta, permanece aqui, lépida e faceira. 

Afora o susto recente com algumas costelas fraturadas após um tombo, Christina segue uma rotina ativa: faz pilates, fisioterapia, natação e encontra um tempinho para a uma companheira de décadas: a máquina de costura. Agora é aguardar a festança com três velinhas no bolo e celebrar a vida da pessoa há mais tempo aqui.


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