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Homo cascavelensis

Quem era o homem médio cascavelense ao longo dos diferentes ciclos econômicos? Como viviam, o que vestiam e consumiam? Aqui está uma tentativa pretensiosa e sociologicamente ousada de descrever o homo cascavelensis em distintos contextos históricos

Anos 1950, até o final da década de 1960: A grosso modo, o homo cascavelensis dessa época poderia ser descrito como um sujeito de poucas letras trajando um brim “coringa” - versão remota do jeans - trabalhando em uma serraria encravada em mata de pinheirais, taquaras e samambaias.

Havia mais de 150 CNPJs nesse segmento no auge do Ciclo da Madeira, quando a maior floresta de araucária que já revestiu o planeta, no Oeste do Paraná, foi ao chão para a construção de Brasília e a reconstrução da Europa devastada pela Segunda Guerra. O cascavelense dessa época, segundo o historiador Alceu Sperança, poderia ser um caboclo ou descendente de europeu pobres - poloneses, ucranianos e russos. Habitava pequenas casas de madeira enfileiradas e padronizadas, cedida pelos madeireiros. 

A concentração masculina aqui - a exemplo do que acontece em áreas de garimpo - gerou o “Polo da Luz Vermelha”, inicialmente nas imediações de onde está o Teatro Municipal, e projetou a cafetina Francisca Lessa, a Chiquinha, como nome feminino mais pronunciado de toda uma época.

A Cascavel dos anos 1950/1960 tinha uma fama terrível. Frequentada por grileiros de terras e pistoleiros de aluguel a serviço da grilagem, era conhecida como a capital paranaense do jaguncismo. A história dessa época foi escrita com sangue e episódios tenebrosos que ganhavam manchetes garrafais na imprensa curitibana.

Candidato a governador, Ney Braga veio a Cascavel para um comício em 1960. No palanque armado em plena Avenida Brasil, começou dizendo que iria assumir o governo com a lei em uma mão e a vassoura na outra, “porque essa desordem tem que acabar, a violência não pode continuar”. 

De repente, um temido bandidão acobertado pela Inspetoria de Terras interpelou o candidato. Estupefação e silêncio geral na platéia. Mas o orador, milico formado na antiga Escola Militar do Realengo, não se deixou intimidar: “Olha, amigo, você está na sua, eu estou na minha. E vamos ver no que vai dar”. Deu Ney Braga na eleição estadual daquele ano.

Um dos poucos que se atrevia a denunciar publicamente as barbaridades que aconteciam no município e na região era o padre Carlos, um alemão corajoso que fora prisioneiro de guerra na União Soviética. “É mais pecado roubar terra do que roubar dinheiro”, dizia padre Carlos na Igreja Matriz, fustigando os players “empreendedores” da ladroagem fundiária. Por isso mesmo, em 1962 tentaram assassiná-lo.

Anos 70, até meados da década de 1980: O homo cascavelensis acorda em um barraco periférico às 4 horas da madrugada, prepara um rango para marmita que será consumido a frio, põe a enxada nas costas e sobe à carroceria de um caminhão. 

É o Ciclo da Soja, marcado pela destoca das raízes dos pinheirais e a mecanização da agricultura, com adoção da monocultura oleagionosa. 

A década perdida que seguia- -se ao desastre econômico agravado pela crise do petróleo, produziu em Cascavel milhares de trabalhadores rurais volantes, os “bóias frias”. Eles laboravam em regime que hoje seria considerado análogo à escravidão.

2ª metade dos anos 1980 até início dos anos 90: A nova geração de cascavelenses vestia calça social, sapato bico fino e camisa de marcas genéri

cas em tom xadrez adquiridas no carnê da Riachuelo - loja dotada da revolucionária primeira escada rolante da cidade. Éramos bancários, centenas, milhares talvez. Agências dos bancões Bradesco e Itaú poderiam comportar mais de 150 Homo cascavelensis cada. O setor de serviços florescia.

O bancário típico passava a manhã de sábado lavando e polindo um GM Chevete ou um VW Passat dotado de roda cruz de malta e toca-fitas auto-reverse. À tardinha, desfilava o bólido lentamente em 2ª marcha pela faixa direita da Avenida Brasil. 

Era o rolê da época, que à noitinha poderia desembocar no Flash Discoteque ou em lugares ermos, como o Feitiço e o Barra Lanches, onde o cardápio era picante.

CASCAVELENSIS CONTEMPORÂNEO

Cascavel recebeu o novo milênio em acentuado movimento de verticalização, quando construtoras como a Formato, dos irmãos Sciarra e a JL, entre outras, espetaram torres em toda a cidade, formando os paredões das mansões suspensas da rua Minas Gerais.

O homo cascavelensis, em vigorosa ascensão econômica, e que sempre acalentou o sonho de aposentar-se e viver no litoral de Santa Catarina, descobre uma “praia” mais próxima: Marinas de Boa Vista, conhecida no ciclo da bóia-fria como um lugarejo de borrachudos às barrancas do rio Iguaçu então denominada “Aparecidinha”.

Centro comercial em processo de consolidação, Cascavel labutava para derrubar as últimas porteiras erguidas pela turma do capitalismo sem risco e sem concorrência (vide Catuaí).

Surgiam outras categorias: representante comercial (que acumulava a função de peladeiro no clube Comercial) e eles, os corretores de imóveis, que em tempos de redes sociais surgem às centenas em todos os stories e reels mostrando oportunidades imperdíveis em penthouses e sofiscadíssimos apês que não faltam nem falar. Da mesma forma que a maquinaria extinguiu o bóia fria, as telas multicoloridas estão extinguindo o bancário…

O cascavelense contemporâneo também pode falar outros idiomas e ostentar muita melanina na pele, rompendo a tez branca outrora largamente majoritária, com a chegada dos haitianos e venezuleanos, lotados notadamente num ofício numeroso aqui, denominado genericamente como “auxiliar de produção”, no úmido chão de fábrica dos frigoríficos. 

Essa foi a caminhada do homo cascavelensis até aqui. Qual será a próxima? Que Angícia, a deusa serpente da mitologia romana, dê saúde e inspiração para o Pitoco relatá-la na próxima década.

Em tempo: antes que estrilem as cornetas do politicamente correto, a expressão Homo cascavelensis, inventada e patenteada neste texto, não define gênero. E incorpora elementos históricos protagonizados por todos, todas e todes.

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